Ódios religiosos a toda forma de afeição

Será que alguém torceria pelo insucesso amoroso de Romeu e Julieta. Bem, no tempo deles, a relação amorosa foi interditada por ódio de famílias. Questão de honra: não era permitido amor entre filhos se houvesse odiosidade entre pais. A moral estabelecida obrigava à herança das desafeições.
Tristes tempos. Tempos de preconceito e rancor. Hoje, contudo, seria pior. Se os Capuleto, no Brasil atual, permitissem que Julieta namorasse Romeu, acabariam em encrencas. O Ministério Público acusaria descuidados, o Juizado de Menores determinaria intervenção. O Conselho Tutelar e a Polícia seriam acionados.
É que Julieta tinha treze anos e Romeu, parece, dezesseis. Logo, não pode. A coisa deixaria de ser caso de amor e se tornaria caso judicial. Religiosos não gostam da referência, mas nem o “espírito santo”, atualmente, no Brasil, se daria bem. Maria, afinal, tinha doze. Com ou sem consentimento, é estupro legal.
Aliás, família incomum, a da Maria. A narrativa é a seguinte: com doze anos, casada com José, engravida de “deus”. Fico curioso: como ficaria “isso” em face das regras que certos deputados religiosos querem que se converta no Estatuto da Família? Nas normas desses parlamentares, o trio, ou o poliamor, seria inaceitável.
A Comissão Especial do Estatuto da Família da Câmara dos Deputados aprovou (24set) projeto que define família como o núcleo formado a partir da união entre um homem e uma mulher. O texto cumpre comandos bíblicos contra homossexuais. É uma vitória da bancada religiosa, que faz a maioria esmagadora da Comissão.
O objetivo dos religiosos é sufocar a decisão do Supremo Tribunal Federal de amparar legalmente as formações familiares não tradicionais. Querem vetar-lhes o acesso às políticas públicas nas áreas de saúde, segurança, educação etc. É uma lei nada piedosa para um cristão; a cristandade legislativa é bem hostil.
Trata-se de uma lei, se chegar a tanto, natimorta, dado que não pertence ao Estado (nem por atribuição legal, nem por capacidade gerencial) definir o que é ou deixa de ser família. Ademais, como dito, o STF já decidiu favoravelmente às uniões homoafetivas, fundado na garantia da dignidade da vida das pessoas.
Por inconstitucional, não subsistirá lei alguma dessa investida “purificadora” da bancada cristã, mas sobrará o ódio decorrente das implicações religiosas com o real. Os afetos entre os corpos avançaram sobre crenças tolas. O religioso, entretanto, insiste em conformar o mundo à sua mentalidade anacrônica.
Se as composições das famílias mudaram, o conceito religioso de família não mudou. Se o STF reconhece o fato social e lhe atribui direitos, o religioso lê a realidade como pecaminosa e quer “salvá-la”. Se as pessoas querem liberdade para viver a vida, o religioso vê a vida como sacrifício para alcançar a “salvação”.
A Sociedade Civil lúcida se espanta, fica indignada. Mas, ora bem, essas práticas legislativas são decorrências necessárias do que acontece no País. Se temos um sistema nacional de comunicação pública entregue a líderes religiosos e se esses líderes usam rádio e televisão para se fazerem políticos, que esperar?
“Há 70 anos foi ao ar o primeiro programa de rádio brasileiro de cunho religioso, A Voz da Profecia. Hoje, rádio e igreja ligam altares e microfones num fenômeno que desafia os pesquisadores. Seja através de emissoras próprias ou de espaços comprados, trata-se de um conteúdo cotidiano e marcante na radiofonia nacional.
Cerca de 40% das redes de rádio brasileiras estão vinculadas a grupos religiosos – e ainda há que se considerar as pequenas emissoras, rádios comunitárias e webradios” (http://migre.me/rDs91). Nas televisões, a coisa está pior. Há uma guerra santa sendo levada ao povo por meio de altares eletrônicos (http://migre.me/rDsit).
Espaço público laico: República. Vida cívica ativa: Política. Ou se cuida disso, ou se é engolido pela mentalidade do retrocesso. Os deputados religiosos estão conforme o que pensam. A laicidade está enfastiada, retardatária, incoerente com sua indignação. Sem cidadania, sobra ódio, falta afeição.

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